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O livro do Deuteronômio e sua história redacional

O Deuteronômio é o quinto livro do Pentateuco e, como que concluindo a Torá, introduz a História Deuteronomista que o segue. Segundo Félix Garcia Lopez, o livro é uma encruzilhada, pois nele se encontram as tradições mais antigas dos quatro primeiros livros da Bíblia e a projeção das tradições mais recentes dos livros seguintes, de Josué a Reis. O seu conteúdo literário, o próprio início do livro já nos indica: “São estas as palavras que Moisés dirigiu a todo Israel, no outro lado do Jordão.” (Dt 1,1). O Deuteronômio configura-se, pois, como o discurso de adeus de Moisés ao povo de Israel, que encerrando a sua marcha pelo deserto, encontra-se às portas da Terra Prometida. Ora, pela pesquisa bíblica, sabe-se que este tempo e lugar e até mesmo a atribuição da redação do livro ao próprio Moisés é um recurso da ficção literária, muito comum entre os escritos bíblicos.[1]

A questão do nome Deuteronômio também desperta, inicialmente, alguma curiosidade. Na Bíblia Hebraica, o título do livro são suas palavras iniciais (São estas as palavras...), mas na versão dos Setenta (LXX), os alexandrinos traduziram a expressão “cópia da Lei” (Dt 17,18) por “segunda Lei” (to deuteronomiom touto), o que posteriormente foi conservado nas traduções latinas (deuteronomium). Para alguns talvez um equívoco, mas para outros a ideia de que a tradução grega quisesse dar ênfase no Deuteronômio como uma atualização do Código da Aliança (Ex 20–23) para novos tempos e situações.[2] Nesse sentido, ao tomarmos o livro do Deuteronômio como uma atualização da antiga legislação, faz-se necessário indagar pela sua origem, autor, época e lugar de redação.

A história de redação do Deuteronômio não é curta. Segundo alguns estudos mais recentes, estima-se que o processo redacional do livro girou em torno de 350 anos: de Jeroboão II até a reforma de Esdras, ou seja, de 750 a.C. a 400 a.C.. Tampouco se pode pensar em um único autor para a obra, mas em vários autores ou grupos sociais que, em momentos históricos distintos, agregaram ao texto seus interesses e contextos. Segundo Shigeyuki Nakanose, o núcleo mais antigo do Deuteronômio que compreende os capítulos de 12 a 26, em sua quase totalidade, tem sua origem no período pré-estatal. O “Protodeuteronômio”, como também ficou conhecido esse material, recebeu muitos acréscimos ao longo do tempo, sendo retrabalhado de maneira muito especial no Norte, por volta do século VIII a.C.[3]

De maneira didática, haja vista a complexidade de se precisar toda a longa história redacional do Livro do Deuteronômio, pode-se destacar seis momentos principais nesse processo, a saber: 1. período pré-estatal; 2. reino do Norte – metade do século VIII a.C.; 3. reforma de Ezequias; 4. reforma de Josias; 5. redação exílica; 6. redação pós-exílica. Na primeira e segunda etapas temos a redação do núcleo mais antigo do Deuteronômio, contendo leis humanitárias e centralizadoras (Dt 12–26) . Na terceira e quarta etapas, marcadas por um período de reformas, o texto foi revisto, acrescentado e reeditado (Dt 4,44–28,68). Por fim, na quinta e sexta etapas aconteceu uma revisão e reedição (Dt 4–28) e uma ampliação (Dt 1–4; 29–34).[4] Vejamos algumas nuances dessa história!

O período pré-estatal, de acordo com Nakanose, foi o solo fecundo para o surgimento das leis mais antigas do Deuteronômio. A sociedade que se formava, organizada em torno das famílias, clãs e tribos, trazia consigo a dura experiência da escravidão, pobreza e miséria, tematizada no êxodo. No entanto, a aliança com o Deus libertador, inspirava agora uma nova organização, mais igualitária, descentralizada, justa, onde todos eram irmãos.[5] É essa realidade que nos leva, de acordo com Storniolo, a encontrar as raízes do Deuteronômio nas antigas alianças, dentre as quais são principais: a do Horeb-Sinai (Dt 5,6-20); a de Moab (1,5; 4,44-46; 28,69; 31,9-13); a de Siquém (Js 24); e a de Guilgal (1Sm 12). A não distinção das mesmas ao longo do texto quer, por sua vez, mostrar a sua continuidade.[6]

Muito provavelmente, as origens do Deuteronômio estão nas festas de renovação dessa aliança com Deus. “A liturgia era a fonte de abastecimento da memória da libertação (Dt 16,1.3.6.12) e do compromisso da aliança.”[7] Os textos, com estruturas muito semelhantes aos antigos tratados orientais de vassalagem, eram guardados nas famílias e nos santuários e, nessas ocasiões eram pregados ao povo. Numa espécie de catequese, a aliança era atualizada e aplicada às novas vivências da comunidade por um grupo de levitas itinerantes. Tais levitas, por não possuírem nenhum ofício litúrgico específico nos santuários, eram desprovidos economicamente e, por vezes, tidos ao lado dos mais pobres e desamparados.[8]

Como vemos, o Deuteronômio é o resultado de um esforço pastoral dos levitas itinerantes, que procuravam tornar concreta na vida prática a aliança que era renovada nos santuários, por ocasião das festas. Como os profetas, eles criticavam as instituições e as relações sociais corrompidas, e anunciavam o caminho para a conversão, a fim de haver fidelidade à aliança. (...) A consciência de serem os legítimos continuadores da palavra de Moisés levou os levitas a atribuírem a própria pregação a Moisés, o que lhes dava autoridade para a crítica e o anúncio que faziam ao povo do seu tempo.[9]

Agora, apesar de encontrarmos os primeiros traços do Deuteronômio nesse período pré-estatal da história de Israel, é no Reino do Norte, por volta de 750 a.C., que o núcleo mais antigo do livro ganhou forma e nasceu. Em Israel, a partir do reinado de Amri (885-874 a.C.) e de seu filho Acab (874-853 a.C.) houve uma consolidação do sistema urbano e a ampliação das relações comerciais com os reinos vizinhos. A política mercantilista então implantada produziu um grande conflito com os camponeses, que por meio dos grupos proféticos de tradição efraimita, reagiram duramente à corte. Com Jeú, que subiu ao trono em 841 a.C., houve, à primeira vista, uma superação desse conflito, pois os sacerdotes e profetas levíticos, liderados por Eliseu, passaram a ser conselheiros do rei (cf. 2Rs 13,14-19). No entanto, com a institucionalização da profecia, “a tradição profética efraimita, portadora do ‘Protodeuteronômio’, entra na corte, que se apropria das leis aí contidas e as coloca em seu favor.”[10]

No reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.) Israel alcançou seu apogeu político e econômico. Segundo Donner, “Jeroboão II era rei de um Estado de paz com as outras nações; interiormente reinavam bem-estar e um grau considerável de prosperidade econômica (2Rs 14,23-29).”[11] Todavia, tal riqueza não crescia de forma equitativa, mas apenas nas cidades. “O brilho do reinado de Jeroboão II encobriu só imperfeitamente os males sociais, a corrupção na administração e no exercício da justiça.”[12] Toda essa situação provocou uma grande resistência popular, sobretudo dos grupos proféticos de tradição efraimita, dentre os quais destacaram-se o de Amós e de Oséias. Destarte, foi esta confluência da pregação levítica com os círculos proféticos do Norte e, até mesmo com algumas escolas sapienciais que gerou o núcleo fundamental do Deuteronômio.

A história, todavia, não cessou por aí. Após a morte de Jeroboão II, o Reino do Norte entrou em decadência e a ascensão do Império Assírio tornou-se um perigo iminente. Com a guerra siro-efraimita (734-732 a.C.) e a derrocada da monarquia (722 a.C.), Israel ficou profundamente abalado. Muitos dos que não foram deportados, fugiram para o Reino do Sul, levando consigo suas tradições. Por se tratar de povos irmãos, acredita-se que essas tradições obtiveram boa aceitação em Judá, recebendo novo impulso e elaboração. Ezequias (715-687 a.C.), que reinou em Judá após a queda da Samaria, na tentativa de unificar o Norte e o Sul, iniciou uma significativa reforma política-religiosa para a qual utilizou como justificativa a renovação da aliança com Javé. As leis centralizadoras bem como a centralização do culto foram ao encontro dessa sua política nacionalista.[13]

A reforma de Ezequias, todavia, não foi concluída por conta da invasão de Senaquerib, em 701 a.C.; e a nova edição do Deuteronômio foi escondida no templo, pois, sob Manassés e Amon, a situação em Judá tornou-se muito complicada. Foi somente no reinado de Josias (640-609 a.C.) – num momento em que o poder da Assíria já havia diminuído e a Babilônia ainda não despontava no cenário internacional – que, durante a restauração do templo, se encontrou um tal Livro da Lei (cf. 2Rs 22,8). Segundo Stornilo, “os estudiosos estão de acordo em afirmar que esse livro era o Deuteronômio no seu núcleo central, mais os acréscimos de Ezequias”.[14] A descoberta desse material foi muito importante, pois, a reforma política já iniciada por Josias ganhou nova força, transformando-se em reforma religiosa.

As leis mais radicais sobre centralização (Dt 12,13-19.26-27; 18,6-8 etc) e as leis da guerra para justificar a conquista do Norte por Josias e também recrutar o povo para guerra (Dt 20; 23,10-15) provêm desse período. A apresentação do “livro da lei” foi uma forma eficaz de legitimar a reforma. Outro elemento de justificação da reforma, como no tempo de Ezequias, foi a teologia davídica que proclamava o rei como “filho de Deus”, “pai e defensor dos pobres”. Isto dava a ele o direito de cobrar tributos em espécie e em forma de corveia.[15]

Embora houvesse essa cooptação da tradição deuteronômica em favor da monarquia, é inegável a importância que essa tradição adquiriu para o povo judeu. Afirma-se atualmente, que a partir desse período surgiu a Escola Deuteronomista, a qual, além da elaboração da Obra Histórico-deuteronomista, empreendeu longo trabalho de revisão do Deuteronômio, acrescentando-lhe elementos históricos, teológicos e documentos anexos.[16] Foram os deuteronomistas que durante o Exílio na Babilônia (586-538 a.C.) acrescentaram “textos para explicar o motivo do exílio, as consequências e possibilidades de saída (...) É o povo quem quebrou a aliança, é o povo quem tem que fazer o caminho de volta!”[17] No pós-exílio (cerca de 400 a.C.), foram dados os últimos ajustes no texto a fim de que o mesmo, compondo o Pentateuco, fizesse também a ponte com a História Deuteronomista. “O conjunto do livro quer ser um apelo à conversão ao Deus oficial, à sua lei e à unidade do povo eleito, Israel, na sociedade teocrática de Neemias e Esdras.”[18]

Como observamos acima, a longa história redacional do Deuteronômio foi marcada por diferentes circunstâncias e contextos. Os textos, ora foram forjados numa ótica subversiva, ora retrabalhados numa ótica superversiva.[19] Todavia, em linhas gerais, é possível afirmar que o Deuteronômio configurou-se como um “programa idealista, sem dúvida, mas com boa dose de realismo. Reflexão teológica com base sociológica. Projeto de reforma religiosa, com fortes implicações políticas e sociais, por mudança sociorreligiosa.”[20]


Fr. Tailer Douglas Ferreira, OSA

Secretariado de Animação Vocacional e Juvenil e membro da Equipe de Formação da Província. 
Contato: frei.tailer@sicbh.com.br

REFERÊNCIAS:

[1] Cf. LOPEZ, Félix Garcia. O Deuteronômio: uma lei pregada. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p. 8-11.
[2] Cf. STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro do Deuteronômio: escolher a vida ou a morte. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 8.
[3] Cf. NAKANOSE, Shigeyuki. Para entender o livro do Deuteronômio: uma lei a favor da vida? RIBLA, Petrópolis, n. 23, p. 176, 1996/1.
[4] Ibidem, p. 177.
[5] Ibidem, p. 177-178.
[6] Cf. STORNIOLO, 2004, p. 23-24.
[7] NAKANOSE, 1996, p. 178.
[8] Cf. STORNIOLO, 2004, p. 24-25.
[9] Ibidem, p. 25.
[10] NAKANOSE, 1996, p. 180.
[11] DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos: da época da divisão do reino até Alexandre Magno. 2. ed. Vol. 2. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1997, p. 328.
[12] Ibidem, p. 328.
[13] Cf. NAKANOSE, 1996, p. 181-182.
[14] STORNIOLO, 2004, p. 29.
[15]  NAKANOSE, 1996, p. 183.
[16] Cf. STORNIOLO, 2004, p. 29-30.
[17] NAKANOSE, 1996, p.184.
[18] Ibidem, p. 185.
[19] Cf. STORNIOLO, 2004, p. 31.
[20] LOPEZ, 1992, p. 12.
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