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Igreja e pandemia: um olhar a partir da vulnerabilidade existencial

A pandemia do coronavírus e suas consequências aclararam as vulnerabilidades existentes na pessoa humana, na sociedade e também no ambiente eclesial. Neste artigo científico, publicado na revista ESPAÇOS, o Frei Thales Ryan de Carvalho, graduando do curso de Teologia no Instituto São Paulo de Estudos Superiores, reflete sobre essas vulnerabilidades existenciais e as perspectivas para o enfrentamento da pandemia.

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Resumo

O artigo busca contribuir com a reflexão sobre a relação entre Igreja e pandemia. Para isso, o autor desenvolve uma delimitação teórica ao centralizar sua investigação nas vulnerabilidades existenciais manifestadas por ocasião da atual pandemia e que exigem respostas eclesiais distintas. Investiga, primeiramente, o conceito de vulnerabilidade existencial, tendo como pressupostos a Revelação de Deus na criação e a pessoa, a violência comunitária e a liberdade humana. Em seguida, elenca as três perspectivas centrais que orientam a humanidade para a integração da vulnerabilidade existencial: subjetiva, sociológica e eclesiológica. Palavras-chave: Igreja, Pandemia, Vulnerabilidade, Fratelli Tutti e Revelação

Introdução

Nos votos mais otimistas no final do ano de 2019, seguramente não estava incluído na expectativa de nenhum dos brasileiros que o país enfrentasse um momento tão complicado que é a pandemia do novo Coronavírus, o Covid-19. Em março de 2020, mais especificamente, nosso país teve que tomar algumas medidas para conter a propagação desse vírus e a principal delas foi o isolamento social. Diante de um vírus que causa angústia devido ao alto índice de mortalidade e não é seletivo quanto aos infectados, os efeitos da pandemia não ocorreram somente na área da saúde; mas, em decorrência de todo o contexto, provocou inúmeras consequências na vivência de todos os brasileiros.

As consequências da pandemia se apresentam, nesse cenário, como o panorama principal para a nossa reflexão uma vez que a Igreja também foi e está sendo afetada por essas consequências. A priori, pode-se pensar apenas em consequências de caráter financeiro ou a não participação dos fiéis na vida sacramental da Igreja; no entanto, existem outras implicações de natureza espiritual e social que tocam, inclusive, a missão da Igreja. Nessa relação entre Igreja e pandemia, não podemos nos afastar de uma compreensão hermenêutica que busque a solução das dificuldades na vida eclesial. Mas, para além disso, é necessário elaborar uma reflexão com os elementos pertinentes da realidade atual com o fim de fortalecer as iniciativas eclesiais futuras que transformem o quadro atual.

Assim sendo, pretendemos neste artigo, refletir a relação entre Igreja e pandemia acentuando o aspecto da vulnerabilidade existencial que, como veremos, abrange outros sentidos que auxiliam na reflexão teológica. Em primeiro lugar, investigamos uma definição para o termo vulnerabilidade existencial, a partir do conceito de vulnerabilidade empregado à existência humana e, neste enfoque, cristã. Em segundo lugar traçamos, de forma concisa, três pressupostos importantes para a compreensão efetiva da vulnerabilidade social dentro da delimitação da relação Igreja e Pandemia: a revelação de Deus, o conceito de bode expiatório e a liberdade humana.

Por fim, em terceiro lugar, erigimos três perspectivas principais que contribuem para nosso intento e que dizem respeito à localização da realidade eclesial neste tempo de pandemia. A primeira delas é a perspectiva subjetiva, que é o primeiro nível afetado pela pandemia – o sujeito em si, suas expectativas e sua construção da identidade; alterado o locus existencial do sujeito individual, é natural que se rearranje o espaço social. Disso decorre que a segunda reflexão que desenvolvemos é a perspectiva sociológica, isto é, buscamos os elementos que nos mostram o grau de influência da pandemia nos espaços sociais e o quanto a vulnerabilidade desse espaço exige da Igreja uma postura ativa e acolhedora. Por fim, concluímos com a perspectiva eclesiológica, analisando os meios pelos quais a Igreja pode utilizar-se para promover a partilha e a integração das vulnerabilidades decorrentes da pandemia e ser sinal de libertação e esperança para o mundo. 

1. O conceito de vulnerabilidade existencial

A palavra vulnerabilidade é comumente utilizada na sociedade em diferentes campos temáticos, sobretudo nos meios acadêmicos. Originária do verbo em latim vulnerabile que é traduzido em português por vulnerável, esta palavra está relacionada com a capacidade que alguém tem de ser afetado, ferido ou prejudicado, tanto a nível físico como moral. Em nossa compreensão, entendemos a vulnerabilidade como o nível de reação, seja individual ou comunitária, no que se refere à seleção do meio. Esta seleção nada mais é do que as condições extrínsecas à humanidade e que, de uma maneira ou outra, acabam influenciando as relações humanas.

É factível, então, buscarmos na história humana eventos nos quais o meio influenciou diretamente as reações humanas, conforme o critério de vulnerabilidade. Para isso, deve-se ter em mente que o meio ao qual nos referimos alude ao âmbito espacial cujos fenômenos podem ser apreendidos pela razão humana e que pode estar concentrado de componentes naturais ou culturais. No primeiro caso, o meio expressa a seleção natural quando os acontecimentos da natureza, os quais o ser humano não tem controle, acabam por influenciar as ações humanas, deixando claras as vulnerabilidades da humanidade. É nesse caso distintivo que se localiza a pandemia do Coronavírus, em que, diante dos avanços científicos até o presente momento, o que se observa é a constatação de que a pandemia é acarretada por causas naturais.

No segundo caso o meio é seletivo quando as ações humanas demonstram as fragilidades dos processos construídos socialmente, pela dominação humana. É o caso, por exemplo, das guerras onde, por interesses específicos, busca-se a eliminação do outro. É relevante assinalar que mesmo para a destruição, o aspecto da vulnerabilidade é necessário uma vez que permite a um grupo identificar as falhas de outro grupo e explorá-las. Um exemplo disso é a estratégia russa, durante os ataques napoleônicos, de confundir o caminho dos inimigos ao fazê-los enfrentar o duro inverno de seu território para, assim, conquistar vantagem em relação ao inimigo. Outro exemplo da vulnerabilidade cultural é quando o ser humano percebe os limites de sua criação através dos resultados negativos consequenciais dos objetos criados. Cita-se, aqui, o caso recente do rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, em que não se deve culpar o meio natural pela ação, mas, maiormente, os responsáveis pelo empreendimento, condizentes com as conformações racionais geradoras. 

Em uma compreensão histórica, poderíamos perceber inúmeros exemplos que mostram que a humanidade, desde a sua criação, sempre foi e está vulnerável, seja aos agentes naturais do meio, seja aos construtos humanos que, apesar dos avanços racionais e tecnológicos, estão longe de alcançar a perfeição da criação. Nesse sentido, realçamos três instâncias dialéticas que, como pressupostos pertinentes, contribuirão para a nossa concepção de vulnerabilidade existencial: a revelação de Deus, o conceito de bode expiatório e a liberdade humana.

No primeiro aspecto, verifica-se que na Revelação de Deus ao ser humano, o próprio criador mostra à humanidade os limites pelos quais, antropologicamente, o gênero humano está inserido. É a partir do próprio ato criador que Deus se comunica à humanidade; a criação é a máxima amorosa onde Deus partilha com o homem a realidade trinitária do amor, oferecendo-nos, mais do que a possibilidade da salvação, a graça da existência humana. Desse modo, ao discutirmos o tema da vulnerabilidade existencial, não podemos dissociá-la da Revelação de Deus que assume, na criação, o caráter fenomenológico do existir e, consequentemente, ser apreendida. É na percepção do que existe que a pessoa humana vê a presença do criador e assim compreende a sua própria existência e a vulnerabilidade que a circunda.

No entanto, é na segunda categoria - a do bode expiatório - que ficará clara a vulnerabilidade existencial enquanto uma condição humana. Segundo René Girard, o bode expiatório pode aplacar os sentimentos de ódio e rivalidade existentes dentro de uma comunidade (GIRARD, 2004, p. 87). Ao eleger um membro como bode expiatório, a comunidade deixa claro as limitações de sua condição humana e é aí que aparece a vulnerabilidade existencial que, no que lhe diz respeito, não é reconhecida no bode expiatório, mas na necessidade da comunidade de, pela violência, reafirmar-se enquanto tal. É nesse paradigma do sacrifício que o bode expiatório, antes culpado para a comunidade, diviniza-se. Assim, aclaram-se as vulnerabilidades antropológicas e inconscientes da comunidade. A divinização do que antes era o culpado pelas fragilidades comuns, corresponde à integração, ainda que de maneira insólita, da vulnerabilidade existencial ali presente. 

Por fim, a terceira instância - a liberdade humana - indica o molde homogeneizador das duas categorias descritas acima. Embora a priori entendamos a liberdade humana como um reflexo do divino em nós, é a partir dela que é possível apreender a realidade do Deus que se auto comunica na criação e tomarmos consciência dos mecanismos inconscientes da violência que nos tornam vulneráveis. O conceito de liberdade que trazemos para a nossa reflexão é a liberdade existencial empregado por Kierkegaard, segundo o qual, ao voltar-se para dentro de si, [o indivíduo] descobre a liberdade. O destino ele não teme, pois ele não se propõe qualquer tarefa voltada para fora, e a liberdade, para ele, é sua beatitude, não a liberdade de fazer isto ou aquilo no mundo (...), porém a liberdade de saber, no seu íntimo, que ele é liberdade (...). Na mesma proporção que ele descobre a liberdade, na mesma proporção avança sobre ele a angústia da culpa, no estado de possibilidade. (KIERKEGAARD, 2010, p. 82)

A angústia da culpa nomeada pelo filósofo corresponde ao momento em que o indivíduo toma consciência das possibilidades que o cerca e das possíveis consequências de suas escolhas. Assim, entre a liberdade e a culpa, há um espaço de fragilidade, uma vulnerabilidade subjetiva que indica o quanto a liberdade é essencial para a vida humana. Desse modo, pelo livre-arbítrio, o ser humano é capaz de religar-se com a criação e com a sua própria natureza humana e assim, deslindar a vulnerabilidade existencial que o cerca.

Transpondo as três instâncias abordadas para a realidade que o mundo vive com a pandemia do coronavírus, é possível afirmar que esta encontra-se dentro da criação, posto que é um fenômeno perceptível não somente pela consciência humana; mas que, inclusive, a afeta. Assim, é errônea a compreensão de que a pandemia seja um castigo de Deus para punir os seres humanos por seus atos. Como um evento natural, a pandemia vem ensinar à humanidade que esta encontra-se vulnerável a todo condicionamento humano com pertinência na realidade. Em um segundo momento, vêse que, ao invés de fazer um percurso de construção e crescimento a partir dos efeitos da pandemia, grande parte das pessoas acentuaram o desejo de violência presente no bode expiatório. Com isso, passou-se a buscar culpados e negligenciar a pandemia, ato que atenta contra a vida. Por fim, é na liberdade que o ser humano tem de assimilar o mundo exterior e crescer com seus erros, que é possível superar a pandemia. 

Portanto, a partir dos pressupostos expostos anteriormente, nota-se que é de suma importância para o ser humano tomar consciência da vulnerabilidade existencial que o cerca, não somente enquanto existência individual. Mas, sobretudo, como existência comunitária. Destarte, uma pessoa só é capaz de dar um salto para o infinito, no sentido de tornar-se um sujeito melhor, quando reconhece o quanto já avançou e o quanto ainda necessita progredir. Nesse intuito, trazemos três perspectivas centrais que orientam a humanidade para a partilha e integração da vulnerabilidade existencial: perspectiva subjetiva, perspectiva sociológica e perspectiva eclesiológica.

2. Perspectiva subjetiva

A primeira perspectiva que orienta a compreensão da relação Igreja e Pandemia é a subjetiva. No horizonte da vulnerabilidade existencial, o ser humano, a quem a Trindade plenamente se revelou através da criação, da História da Salvação e da encarnação, é totalmente responsável por suas ações para com o planeta e não é um ser perfeito que não possa ser afetado pelas exterioridades. Dessa forma, o primeiro nível eclesiológico que foi afetado foi o ser humano. Se partimos do pressuposto de que a Igreja é o Povo de Deus a caminho da libertação, não podemos entender esse povo como massa irreflexa, mas comunidades formadas por indivíduos, pessoas de carne e osso, com sua história, família e vida social.

Esse indivíduo sendo afetado, é natural que toda a comunidade cristã também o seja; milhares de mortes no Brasil pelo vírus não deve ser um número qualquer, mas que indique a eliminação e banalização da vida, o bem mais precioso dado por Deus e defendido pela Igreja. Entretanto, muitas vezes presenciamos a Igreja neste tempo de pandemia preocupada com assuntos secundários, financeiros, divisões internas... falta a unidade, falta a defesa da vida, falta coragem para lutar contra os mecanismos de opressão que ainda destroem, oprimem e marginalizam a população (LÖWY, 2000, p. 64). 

A pandemia veio então, mostrar ao ser humano a fragilidade à qual a humanidade está exposta; não é qualquer fragilidade, é a natureza que responde ao homem que este deve preservar o planeta Terra, olhar a criação que geme e sofre até agora com dores de parto (Rm 8,22). Em sua encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco insiste para que a humanidade busque cuidar da casa comum, repensando os interesses que degradam o meio ambiente; superar isso é ressignificar a vulnerabilidade existencial presente na relação do ser humano com o meio ambiente.

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Autor: Frei Thales Ryan de Carvalho
Graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) e graduando do 6º semestre do curso de Teologia do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). Artigo desenvolvido sob orientação da Prof. Dr. Maria Cecília Domezi. E-mail: thales.ryan@hotmail.com.

Publicação: Revista ESPAÇOS – Instituto São Paulo de Estudos Superiores. 
19 jan
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